segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Meritocracia e racismo.


Nas últimas semanas uma série de polêmicas surgiram nas redes sociais e trouxeram a tona algumas questões importantes para discussão do racismo no Brasil: o veto da FIFA aos atores Lázaro Ramos e Camila Pitanga, cotados inicialmente para apresentar o sorteio dos jogos da Copa do Mundo 2014, e a escolha de Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert
. As discussões levaram ao questionamento do racismo no Brasil, da neutralidade da mídia, a problematização da sub representação do negro nos meios midiáticos e naturalização do branco como norma da humanidade.



Poxa, sejamos sinceros, ser o casal do sorteio da FIFA não é lá tão digno assim. Pelo menos não para o que a Copa do Mundo está acarretando no Brasil e o que significa a instituição FIFA no futebol. Na verdade até acho que a escolha do casal gourmet Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert é muito mais a cara da Copa, ainda mais se pensarmos nas consequências sociais dela. Mas a questão colocada não é essa. Diariamente vivenciamos práticas racistas, mas mesmo assim o Brasil dorme tranqüilo todas as noites já que preconceito racial é coisa do passado, daquela época não tão distante em que havia escravidão. Afinal, até a Globo já teve uma protagonista negra, e coincidentemente a novela levou o nome “Da cor do pecado”, que também “por acaso” dentro o vasto leque de opções, a mesma atriz, Taís Araújo, interpretou a segunda e última novela, cuja protagonista era negra.

E é por isso que o caso da escolha do casal da Fifa passa a se tornar emblemático: é necessário agarrar a tais fatos que ganham destaque na mídia (afinal, envolvia a FIFA, a Copa do Mundo e atores globais) para tocar o dedo na ferida do racismo institucional de nossa sociedade. Essa é a deixa para discutir e problematizar o que ninguém no Brasil - construído como harmônico, misturado, alegre - quer: evidenciar que o Brasil é racista e que, portanto, todos praticamos o racismo.



Certamente teria muitos outros casos para elencar, mortes para escancarar, Amarildos torturados, Douglas mortos sem motivos, ofensas e preconceitos pichados nos muros das universidades públicas contra alunos africanos e negros, mas que certamente não duraria uma semana de debate na mídia. E é aí que este caso, aparentemente fútil e sem importância, ganha uma nova proporção na discussão. Afinal, se o racismo não fosse tão violento e vivo talvez essa notícia de fato não faria diferença e a resposta da Fernanda Lima “só porque sou branquinha?” poderia até fazer sentido. Mas na realidade que estamos hoje não podemos simplesmente separar os fatos e achar que uma coisa não influencia na outra e que não somos responsáveis por isso.


Tal problematização não significa personificar a discussão, a Fernanda Lima não se tornou a vilã racista, muito embora tenha se mostrado um tanto quanto ignorante logo após a polêmica ter eclodido ter iniciado seu programa cantando a música “cada macaco no seu galho”, enfim, cada um que interprete como quiser, mas não sejamos ingênuos. A questão é levantar um ponto bem claro sobre as relações raciais no Brasil e que nós brancos, me assumo neste barco, saibamos reconhecer nossos privilégios. E a meritocracia, neste sentido, é o maior argumento utilizado para deslegitimar qualquer tentativa de democratização, seja social, racial, de gênero ou sexualidade.


Mais uma vez: sim, o casal escolhido já havia realizado trabalhos para a FIFA o que pode sim justificar a escolha deles e não de outros. Mas dentro de um racismo institucional é de se admitir que as oportunidades que uma pessoa branca, oriunda de família rica, dentro dos padrões de beleza exigido pela mídia são muito maiores que de uma pessoa negra, e neste caso, seja ela de classe média alta ou não. Reconhecer privilégios não é choramingar “ah, só porque eu sou branquinha?” e sim admitir seu mérito na questão mas não achar que ele sozinho explica o mundo dentro de um sistema injusto e desigual . Você pode assumir seu mérito, mas sem descartar que o racismo institucional e a desigualdade social a que estamos inseridos faz com que você, branquinha, tenha mais oportunidades, mais portas abertas, mais mãos estendidas do que uma mulher negra. E pode dormir com o travesseiro mais pesado por que sim, você se beneficia da lógica e sistema racista.



Por isso, pode ser um caso aparentemente esdrúxulo – escolha do casal FIFA - e a platéia da direita deve vir com aquele papo sem sentido de “politicamente correto”. Mas não basta escolher uma única lente para ver o mundo, e em especial o Brasil. A luta pelo racismo é diária, e evidenciar práticas racistas, questionar a meritocracia e escancarar desigualdades estruturais fazem parte da tentativa de mudança da leitura que fazemos de nossa sociedade. A escolha do casal FIFA permite refletir sobre a invisibilidade e estereotipia dos negros nos meios midiáticos e a naturalização do branco como correto, norma e padrão. Só se combate o racismo quando admitimos sua existência. E é por isso que casos como esses não devem ser descartados, eles ajudam a problematizar o que o nosso Brasil – construído como alegre e harmonioso – não quer admitir.  

sexta-feira, 21 de junho de 2013

As contradições dos protestos no Brasil



Engraçado, mobilizador e assustador. São essas minhas primeiras impressões sobre a repercussão que o Movimento Passe Livre tomou na mídia brasileira, mundial, nos lares, e principalmente, nas ruas. O movimento, que começou com uma reivindicação específica, assumiu proporções gigantescas: das mais libertárias as mais conservadoras.

Começo com engraçado... porque o movimento contra o aumento da passagem do ônibus se iniciou há semanas e o número de críticas, como sempre ocorreu no Brasil, contrárias à mobilização dos Movimentos Sociais, eram gigantescas e como sempre associando os manifestantes a termos como “baderna”, “depredação” e “vandalismo”. Marchar nos últimos anos era coisa “de quem não tinha o que fazer”, coisa de “arruaceiro”. Quem  participou de qualquer mobilização nos últimos anos sabe o peso negativo que a mídia, e a própria população, sempre atribuiu aos ativistas e ainda o baixo número de aderência a causas legítimas.

Movimento Passe Livre

Engraçado, pois os mesmos que criticaram até quarta-feira, dia 12,  mudaram o discurso, como o próprio Arnaldo Jabor, que depois de mais uma das tantas asneiras pronunciadas em que chamou o Movimento de “provocação inútil”, passou a revisar seus conceitos. E por que isso ocorreu? O fato é que depois da manifestação de terça-feira,  em que houve pretexto para os críticos abusarem dos termos pejorativos, por atos isolados de manifestantes, o estado respondeu com a repressão...
Confronto entre a polícia e os jornalistas
E a repressão chegou mais violenta na quinta-feira quando manifestantes, jornalistas e pessoas que circulavam pela região foram todos atingidos pela truculência e violência da polícia ao som de 15 mil manifestantes gritando “Sem Violência”.  Não teve mais como a mídia segurar as informações, visto que, os vídeos gravados por diversos cidadãos já circulavam em todo país pelas redes sociais (inclusive vídeos da polícia depredando a própria viatura como pretexto para agirem de maneira repressiva). Assim, na sexta-feira a grande mídia já mudava de opinião quando o tiro, antes destinado apenas a periferia, atingiu seus jornalistas. A classe média foi finalmente atingida e aí a história mudou. 

Nesta mudança, tanto dos rumos da mídia, que passou a legitimar o protesto em São Paulo após a mira das armas, cujo destino tinha classe e cor definidas, atingiu si próprios, os rumos do próprio movimento também ganharam outras proporções. A partir daí a repercussão do protesto de São Paulo contra o aumento das tarifas do transportes levou a uma mobilização histórica: o número de manifestantes triplicou em pouco espaço de tempo, e a população de diversas cidades no Brasil inteiro saíram para as ruas. Na última segunda-feira, 500 mil pessoas saíram as ruas nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Pará, Bahia, Distrito Federal e é claro, São Paulo.

E é ai que chego no assustador. A manifestação que teve início em São Paulo, por uma pauta bem definida - Contra o Aumento das Tarifas do Ônibus – passou a assumir diversas faces. E o perigo não são as diferentes bandeiras, mas a descaracterização do movimento que surgiu e que tem um objetivo claro a ser estabelecido: redução das tarifas do transporte público, e uma meta: a implementação do passe livre no Brasil. 
De fato não há problema em diversas bandeiras saírem para as ruas e apoiarem os protestos, isso sempre ocorreu. Quando um Movimento Feminista organiza um ato, por exemplo, é comum que outros movimentos sociais e até partidos saiam as ruas para apoiar a causa, apoiar. O que ocorreu a partir de segunda-feira no Brasil é que a causa em si das marchas assumiram novos rumos e, consequentemente, novos e controversos objetivos.

A direita brasileira também foi as ruas
Aí vimos de tudo: manifestantes contra o Ato Médico, contra a Pec-37, a favor da legalização da maconha, ou alguns mais genéricos como a favor da educação, contra a corrupção (ato que nunca entendi muito bem qual a demanda e objetivos... sair as ruas contra a corrupção é como sair as ruas contra a maldade...enfim), contra a Copa do Mundo no Brasil, contra a presidenta Dilma, e por aí vai.
A direção e os objetivos dos protestos assumiram diversas bandeiras, inclusive (ou principalmente) as mais conservadoras. Em alguns momentos dos protestos, ou em alguns setores, parecíamos deslocados do tempo, já que as bandeiras se assemelhavam à Marcha da Família com Deus pela Liberdade (e propriedade privada).
Em uma mobilização que começou com pautas de reivindicação populares ergueram-se cartazes contrários ao programa Bolsa Família. Contradição? A dimensão que as manifestações chegaram no Brasil levantaram as causas mais elitistas e o perigo é onde isso vai parar. Protestar é um meio e não um fim em si, sem demanda não há resposta e protestar contra tudo é o mesmo que protestar contra nada. 

Slogans como “o Brasil acordou” passaram a emergir. Como se apenas agora, que a classe média saiu para as ruas e as descobriu enquanto espaço de circulação pública e fora de seus carros, o Brasil acordou. Protestos, mobilizações e passeatas sempre ocorreram no Brasil, mas nunca levaram à comoção do Estado, da mídia e da população. Os movimentos indígenas, sem terra, sem teto, até mesmo o passe livre, dentre outros, sempre estiveram nas ruas e sempre foram criminalizados e perseguidos. As denúncias das mortes por atropelamento são recorrentes e o genocídio indígena continua latente. No último mês o indígena terena Oziel Gabriel foi assassinado pela polícia militar após o confronto pela tentativa de despejo de uma terra indígena demarcada desde 2011, e outros casos similares ocorreram mas foram pouco noticiados, como o indígena “atingido por tiros” em Paranhos-MS. 

Relações de poder e privilégio continuam bem demarcadas
O Brasil não acordou porque nunca esteve dormindo, e as relações de privilégio e de poder ainda continuam bem demarcadas. Não é novidade no Brasil que o menino branco de classe média que praticou vandalismo no protesto teve seu pedido de prisão liberado em troca de fiança, enquanto que o menino preto, da periferia, será o primeiro a ser preso. A pobreza no Brasil ainda tem cor e a violência ainda é marcada por relações de gênero. 

Na volta para a casa, a população retorna para seus lares, privilégios e hierarquias, que continuam muito bem estabelecidos e em seu devido lugar, afinal, certamente para grande parte da multidão que caminhava nas ruas, não era disso que se tratava.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Da série Classe Média Sofre: os tomates e o quase fim do mundo



O Brasil acompanhou no último ano o aumento do preço do tomate e de demais alimentos básicos, mas foi o tomate que ganhou destaque pelo expressivo aumento que chegou a 150% do valor antes comercializado no país no período de um ano e cerca de 25% no último mês.

O motivo do alto número de protestos (em especial nas redes sociais) que surgiu a partir do aumento do preço do tomate é compreensível, já que trata-se de alimento bastante utilizado na culinária brasileira. No entanto, esta avalanche de críticas em relação a alta do tomate e a repercussão deste “problema” na mídia, assumiu um exagero, ao meu ver, muito mais alto que o próprio preço do produto.

Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros - Cansei! 
Os constantes protestos em relação ao aumento do preço do tomate me soou familiar ao movimento político intitulado “Cansei” ou “Movimento Cívico pelo Direito dos brasileiros”, que surgiu em 2007 em oposição e crítica ao  governo Lula, cujo os expoentes do movimento eram personalidades como Regina Duarte, Paulinho Vilhena, Silvia Popovic, Luana Piovani, dentre outros famosos, e participavam também, associações como a Ordem dos Advogados de São Paulo. (Qualquer semelhança ao Classe Média Sofre é mera coincidência).

Agora traduzido em outras palavras: “Cansei! Não dá para viver em um país com o preço do tomate tão abusivo! Que país é este?”. O estrondo em relação ao valor do tomate soou como se o aumento do preço deste produto estivesse causando um colapso na economia brasileira. E bastou algumas semanas de um simples boicote ao alimento (que da noite para o dia se tornou produto indispensável na refeição dos brasileiros), para que os tomates apodrecessem nas vendas e supermercados. E assim foi anunciada na última semana a queda do preço do tomate em torno de 43%.
Cansei! Ana Maria Braga protesta com colar de tomates em uma analogia a "joia".

Enquanto o tomate se torna o vilão nacional pelo “quase” fim do mundo causado pelo aumento de seu preço, os noticiários simplesmente nem se lembram que a seca do nordeste é a pior nos últimos 50 anos. O racionamento de água por tempo indeterminado no Ceará não causou revolta na mídia. Qual a repercussão quando o batalhão de choque invadiu o Museu do Índio no Rio de Janeiro, no Maracanã, ocupado desde 2006 por um grupo de indígenas, para a retirada destes com bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta? Inclusive, quem vai se lembrar, perante a alta do preço do tomate, que o acusado de matar o casal de extrativistas do Pará, José Cláudio e Maria, quando estes denunciavam casos de extração ilegal de madeira e grilagem de terras de assentamentos, foi absolvido?
Batalhão de Choque invade a aldeia Maracanã

Além disso, cabe lembrar e problematizar de que forma é realizada a política agrícola no Brasil e suas contradições. A maior parte dos alimentos consumidos no Brasil pelas famílias e restaurantes é proveniente da produção da agricultura familiar, no entanto o repasse de verbas, incentivos e créditos ocorre de maneira desigual entre a agricultura familiar, a agropecuária e o agronegócio, sendo que os dois últimos abarcam 86% de todo crédito do setor agrícola nacional[1]. Portanto, se formos atribuir um vilão nesta história seria a expansão do agronegócio e da produção da soja, o crescimento da monocultura e dos latifúndios e a redução das áreas agricultáveis no país.

Sempre irônica, a mídia elege um alvo público que a população logo abraça como forma de mostrar seu não contentamento, para se colocar enquanto crítica e mostrar que se revolta e se indigna com as desigualdades sociais. Mas tudo isso enquanto tal crítica e revolta tem como alvo de combate um vilão como o tomate, que não incomoda ninguém. Por isso o tomate caiu como luvas nas mãos da classe média, "afinal um macarrão feito de tomates legítimos é muito melhor do que de molho comprado. Como viver em um mundo com molho de tomate pronto e não natural? Um absurdo!"

A indignação pelo alto do preço do tomate, embora tenha todo sentido, chega com um discurso supérfluo, sem problematizar a própria política agrícola realizada no país e soa como hipócrita diante diversos acontecimentos no mês que são minimizados e deixados em segundo plano pela mídia. Não foi apenas o tomate que aumentou os preços, mas ele se tornou um símbolo central, uma celebridade do momento e agora, com a queda do preço do tomate, quem anda com os preços lá em cima é a cebola. Será que haverá nova mobilização virtual e quem sabe um “twitaço” em prol das cebolas?


terça-feira, 9 de abril de 2013

Cultura e a esquizofrenia da elite



Ninguém nasce sem cultura ou transmite cultura para alguém. Taí um processo equivocado. Passamos a considerar a cultura com relação a um processo educativo e formativo dos indivíduos segundo um parâmetro que foi convencionado e que passou a significar educação de acordo com um grupo específico. São determinados conteúdos básicos que os indivíduos devem incorporar para uma convivência harmônica e ao mesmo tempo dominar alguns códigos comuns que facilitam a comunicação. Certamente, a escolha desses conteúdos nunca foi tão “democrática” assim.... e esta é uma guerra que persiste há séculos sobre o que é considerado a forma legítima de saber.

E a cultura entrou nesta dança...  as práticas de um segmento específico da população foi considerada como a expressão máxima e "legítima" de cultura. Assim, a medida dessas elites foi pegar a cultura para si, como a marca genuína do que é ser elite e colocá-la em uma moldura, enquadrá-la. Mero engano. E o preço desse equívoco é a eterna esquizofrenia das elites e sua noção de cultura!
A concepção de cultura para as elites, longe do que ela é, tornou-a como algo fixo, quase imutável na qual uns participam, outros podem participar e outros não. Alguns conseguem obter, já outro não e nunca terão, de uma forma possessiva como se fosse um bem material, como um produto comprado que se coloca na prateleira da sala. E é aí que está o problema... embora a cultura tenha sido mercantilizada, ela é mais que isso e escorre como água das mãos da elite, já que não trata-se de um bem e não é imutável, ela se modifica diariamente. Todos estão na cultura e todos transformam a cultura, embora as elites tentem com todas as forças nadar na direção contrária.


Essa tentativa de fixação da cultura ocorre não apenas com o que as elites consideram como sua cultura, a dita “erudita” e “culta”, mas com a cultura dos outros. É a regra da interação e da afirmação a partir da negação do outro. Assim, para determinar o que é a "nossa" cultura ela determina o que são a cultura dos “outros”, e briga a todo momento para que a cultura dos “outros” também permaneça imutável, para deixar claramente especificado quem é da elite e o que é da elite e o que e quem não é. E com essa visão de mundo que associam os indígenas a tudo que o tange o “rústico”, o “selvagem”, o “não-moderno”, limitando a definição do que é ser indígena de acordo com suas convicções. Por isso, quando um indígena chega até a universidade, ascende no mercado de trabalho ou se utiliza de instrumentos tecnológicos gera um desconforto para esta classe.... ai o discurso das elites é bem claro: como se fosse algo que se “ganha” ou que se “perde” vão considerar que os indígenas “perderam sua cultura”e não conseguem admitir e compreender sua presença na universidade, até então um espaço claramente demarcado como "seu"! Para os outros a fixidez e para si mesma a transformação. O que eles não percebem é que, embora lutem com todas as forças para que a “sua” cultura também se mantenha no lugar, ela já se modificou no tempo... e que a listinha descrita do que é ter cultura para ela é alargada a cada instante, embora neguem veementemente. 

E esta busca esquizofrênica de não mudança é para não perderem nunca os significados do que é “ser elite”. Afinal, se os espaços antes claramente definidos e segregados começarem a se unir, qual será a distinção entre ambas classes? O que determinará meu privilégio? Se todos passarem a andar de avião, cursar universidade e ouvir Chopin, o que me “diferenciará” dessa população que não sabe todas as regras de etiqueta na mesa e que fala alto? E quando um cantor, antes restrito ao gosto fino e apurado das elites, chega ao sucesso nacional é o que basta para dizer que ele já não é mais o mesmo, que bom mesmo eram suas primeiras músicas, afinal, agora todos o conhecem e sabem cantar suas músicas. Tido em outras palavras: virou popular! Lembrando que o "popular" em questão é carregado de um tom pejorativo. O que diferenciará agora? Caetano Veloso também foi acusado de cair a qualidade musical e “não ser mais o mesmo” quando o Brasil inteiro cantava a música “Sozinho”.


Mas há também a bem intencionada elite, aquela que quer sim dividir seu privilégio e refinado gosto, a elite que quer compartilhar de seus temperos, acordes e literatura. O receio com os bens intencionados é quando se pensa que apenas agora, com sua ilustre presença e apresentação de suas significações culturais, que a periferia “atinge” ou “obtém” cultura. Como se antes vivessem em um vazio cultural, sem qualquer expressão e significação próprias!  Certamente é importante o compartilhamento de informações, por exemplo, que escritores clássicos brasileiros cheguem nas mãos, ouvidos e olhares de jovens que não tiveram a oportunidade de conhecer ou de entrar em contato com determinadas artes ou obras. Isto é expandir, sair dos muros, ampliar as visões. Expandir o cinema dos shoppings centers e garantir acesso a uma heterogeneidade de pessoas. Mas que isso seja encarado como uma forma de troca de conhecimento e de informação e não como uma “dádiva de cultura” dos que tem para os que não tem.


A cultura é o espaço para a invenção, para a transformação e para a criatividade. A periferia transborda cultura, com gostos, estilos, músicas, expressões, culinária, poesia, cores ... das mais variadas formas e está em constante mudança... em todos os lugares, de cima para baixo e de baixo para cima. Tratar de cultura é abrir os horizontes, é abandonar a velha opinião formada sobre o mundo e sobre as pessoas, é admitir a mudança, é mesclar tradição com o novo, é vivenciar. A elite que me desculpe, mas cultura é transformação.