quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Sobre Trumps, Crivellas, Dórias e a Banalidade da Política.

Em um dos episódios da série Black Mirror, intitulado "The Waldo Moment", Waldo é um avatar, um personagem fictício de um programa televisivo que ganha popularidade por criticar e satirizar os políticos de maneira escrachada. O fato de Waldo “dizer as verdades” faz com que o personagem caia nas graças do público, nem tanto pela postura política, mas pelo humor que faz das situações políticas e dos políticos. A população quer e prefere votar em Waldo, o mascote virtual, do que nos candidatos existentes. Mesmo sabendo que Waldo não solucionará nada, a descrença na política, a generalização e a falta de participação faz com que as pessoas se identifiquem e criem empatia com ele. Waldo representa a banalização da política e a indiferença em relação à vontade política e democrática.

A ideia de que “político é tudo igual” e que as eleições “vão dar na mesma” é resultado de um processo histórico e que possui diferenças e especificidades locais. De todo modo, podemos ter um ponto de análise comum que é o neoliberalismo do século XXI e o esvaziamento do senso coletivo devido a transformações estruturais das relações sociais, de trabalho, de mercado, dentre outras. Os valores meritocráticos, de consumo e de recompensa individual trazem uma nova dimensão social que esfacelam uma suposta unicidade da classe trabalhadora. Há múltiplas identificações do sujeito que se contradizem em alguns momentos. Além disso, temos o papel da grande mídia como propulsora do discurso da racionalidade do indivíduo como empreendedor de si e no esvaziamento da noção de política, que passa a assumir conotação negativa.

Política” passa a significar, para boa parcela da população, um meio pela qual pessoas defendem interesses individuais ou de seus grupos, uma forma de obter cargos, postos de trabalho e prestígio. Essa compreensão da política para uso de fins privados escamoteia a importância da construção da esfera pública, da garantia de direitos, da ampliação dos canais de comunicação e participação e das tantas outras políticas não institucionalizadas.

A utilização da “não política” nas campanhas eleitorais trazem um esvaziamento preocupante já que pouco interessa o projeto e plano político dos candidatos, o quanto isso dialoga com nossas realidades e a participação e inclusão de diversos setores na proposta a ser implementada. Ao enxergar o campo da política institucional como algo distante e genérico, em virtude da descrença de nosso sistema representativo, a emergência de campanhas conservadoras ganham força em razão da busca por um “salvador da pátria”.

No Brasil, a redemocratização gerou impulsos e participação em torno da formulação da Constituição de 1988, em que diversos setores da população, mulheres, negros, indígenas, população LGBT, setores ligados aos movimentos ambientais, trabalhadores rurais e urbanos passaram a reivindicar direitos específicos e diferenciados. Após as eleições do PT e a implementação de algumas políticas voltadas para o combate às desigualdades sociais, muitos setores dos movimentos sociais foram chamados para fazer parte da própria gestão do governo. A ampliação da participação na política institucional ainda ficou bastante incipiente.
Vamos cuidar das pessoas”, disse Marcelo Crivella em seu primeiro discurso. Esse lema do cuidado é entender a política sob a lógica paternalista, de um punho forte para governar e proteger. O cidadão não tem espaço para participação e não vê, dentro da estrutura burocrática, espaço para a construção política. E veja que tal “proteção” assume diversos sentidos: paternalismo, protecionismo, patriotismo, nacionalismo. Proteger dos de “fora”, dos imigrantes, dos mexicanos, como diz abertamente Donald Trump, presidente recém eleito nos Estados Unidos.

Ao se utilizarem de campanhas que negam a política (como se isso fosse possível!) pouco se diz sobre os projetos e propostas desses candidatos. Isso diz respeito ao lugar de fala. De onde falam? Com qual setor da sociedade dialogam? Qual suas propostas econômicas? Há aqui uma construção de que assumir a “ideologia”, assumir de onde se fala, é algo ruim. “Se tem ideologia, tem doutrinação”. Como se o apelo da “não política” não fosse também político e ideológico.

João Dória se consagrou com a máxima “não sou político, sou administrador”.
Enquanto Marcelo Freixo pautava sua campanha na participação, Crivella venceu com o discurso do estimulo ao empreendedorismo.
É a lógica neoliberal sobre a política, os indivíduos e a vida pública. A política passa a ser compreendida sob o viés de uma grande empresa, que precisa crescer e atingir bons resultados e não assegurar garantias sociais, acesso a bens fundamentais como saúde e educação, direitos humanos e combater desigualdades. Há uma inversão dos valores, usos e sentidos da máquina pública que passa a ser interpretada sob a lógica individualista e neoliberal de metas e crescimento. Pouco se discutiu políticas e garantias sociais por parte dos candidatos eleitos, o ponto foi completamente outro. “Crescimento”, “sair da crise”, “recuperar a confiança”, “voltar a ser grande”.

O foco dessas campanhas é com as pessoas que rejeitam a política ou que estão descrentes com ela. A apolitização e banalização da política propicia uma “entrega” por parte da população para figuras como Trump. Como o personagem virtual, Waldo, seu discurso dialoga com a desilusão do sistema político, uma espécie de salvação de alguém de fora dos quadros institucionais, alguém com vontade, que “diz o que pensa”. Sua campanha também ancorada pelo discurso do ódio e intolerância, embora assuste e cause repúdio de uma parte da população, representa uma rebeldia em relação à política tradicional, sustentada por uma figura indomável e uma forma de representar alguma mudança, independente de qual o rumo dela.

Ora sob a égide do empreendedorismo para o sistema público ora sustentado pela “não política”, tais discursos omitem pontos importantes do debate. Uma é o reconhecimento da própria ideologia desse discurso, que visa afastar cada vez mais a população do fazer política. E outra diz respeito as ações e metas desses governos, ditas nas entrelinhas, cada vez mais neoliberais, das propostas de privatização e de redução de gastos com seguridades sociais.


É preciso, sobretudo, compreender que o campo da politica está muito além da política institucional e burocratizada. Apesar dos retrocessos há muitas resistências acontecendo. Se a grande mídia não noticia, criemos novas e outras mídias. É preciso alargar nossa concepção de política e compreender que uma pixação é política, uma roda de conversa em praça pública é política, que as ocupações são política, que diálogo é política. Em todos os cantos há gritos clamando por outras formas de enxergarmos, compreendermos a política. Essas ações reinventam, deslocam e re-significam a própria política institucional, que precisa ser oxigenada por outros olhares, visões de mundo e novos espaços. Ela está em disputa. O esvaziamento e banalização da política interessa as elites que sempre estiveram no poder. As esquerdas e os movimentos sociais que lutam dentro da política institucional precisam sair dos livros e manuais para se reinventarem e aprenderem com as periferias, com os secundaristas e com tantas outras vozes silenciadas não ouvidas às outras formas de se fazer e vivenciar política.