Em
um dos episódios da série Black Mirror,
intitulado "The Waldo Moment", Waldo é um avatar, um personagem
fictício de um programa televisivo que ganha popularidade por criticar e
satirizar os políticos de maneira escrachada. O fato de Waldo “dizer as verdades” faz com que o personagem caia nas graças
do público, nem tanto pela postura política, mas pelo humor que faz das
situações políticas e dos políticos. A população quer e prefere votar em Waldo, o mascote virtual, do que nos
candidatos existentes. Mesmo sabendo que Waldo
não solucionará nada, a descrença na política, a generalização e a falta de
participação faz com que as pessoas se identifiquem e criem empatia com ele. Waldo representa a banalização da
política e a indiferença em relação à vontade política e democrática.
A ideia de que “político
é tudo igual” e que as eleições “vão
dar na mesma” é resultado de um processo histórico e que possui diferenças
e especificidades locais. De todo modo, podemos ter um ponto de análise comum
que é o neoliberalismo do século XXI e o esvaziamento do senso coletivo devido
a transformações estruturais das relações sociais, de trabalho, de mercado,
dentre outras. Os valores meritocráticos, de consumo e de recompensa individual
trazem uma nova dimensão social que esfacelam uma suposta unicidade da classe trabalhadora.
Há múltiplas identificações do sujeito que se contradizem em alguns momentos. Além
disso, temos o papel da grande mídia como propulsora do discurso da
racionalidade do indivíduo como empreendedor de si e no esvaziamento da noção
de política, que passa a assumir conotação negativa.
“Política” passa a
significar, para boa parcela da população, um meio pela qual pessoas defendem
interesses individuais ou de seus grupos, uma forma de obter cargos, postos de
trabalho e prestígio. Essa compreensão da política para uso de fins privados
escamoteia a importância da construção da esfera pública, da garantia de
direitos, da ampliação dos canais de comunicação e participação e das tantas
outras políticas não institucionalizadas.
A utilização da “não
política” nas campanhas eleitorais trazem um esvaziamento preocupante já
que pouco interessa o projeto e plano político dos candidatos, o quanto isso
dialoga com nossas realidades e a participação e inclusão de diversos setores
na proposta a ser implementada. Ao enxergar o campo da política institucional
como algo distante e genérico, em virtude da descrença de nosso sistema
representativo, a emergência de campanhas conservadoras ganham força em razão
da busca por um “salvador da pátria”.
No Brasil, a redemocratização gerou impulsos e participação
em torno da formulação da Constituição de 1988, em que diversos setores da
população, mulheres, negros, indígenas, população LGBT, setores ligados aos
movimentos ambientais, trabalhadores rurais e urbanos passaram a reivindicar
direitos específicos e diferenciados. Após as eleições do PT e a implementação
de algumas políticas voltadas para o combate às desigualdades sociais, muitos
setores dos movimentos sociais foram chamados para fazer parte da própria
gestão do governo. A ampliação da participação na política institucional ainda
ficou bastante incipiente.
“Vamos cuidar das
pessoas”, disse Marcelo Crivella em seu primeiro discurso. Esse lema do
cuidado é entender a política sob a lógica paternalista, de um punho forte para
governar e proteger. O cidadão não tem espaço para participação e não vê,
dentro da estrutura burocrática, espaço para a construção política. E veja que
tal “proteção” assume diversos sentidos: paternalismo, protecionismo,
patriotismo, nacionalismo. Proteger dos de “fora”, dos imigrantes, dos
mexicanos, como diz abertamente Donald Trump, presidente recém eleito nos Estados Unidos.
Ao se utilizarem de campanhas que negam a política (como se
isso fosse possível!) pouco se diz sobre os projetos e propostas desses
candidatos. Isso diz respeito ao lugar de fala. De onde falam? Com qual setor
da sociedade dialogam? Qual suas propostas econômicas? Há aqui uma construção
de que assumir a “ideologia”, assumir de onde se fala, é algo ruim. “Se tem
ideologia, tem doutrinação”. Como se o apelo da “não política” não fosse também político e ideológico.
João Dória se consagrou com a máxima “não sou político, sou administrador”.
Enquanto Marcelo Freixo pautava sua campanha na participação, Crivella venceu com o discurso do estimulo ao empreendedorismo.
É a lógica neoliberal sobre a política, os indivíduos e a
vida pública. A política passa a ser compreendida sob o viés de uma grande
empresa, que precisa crescer e atingir bons resultados e não assegurar
garantias sociais, acesso a bens fundamentais como saúde e educação, direitos
humanos e combater desigualdades. Há uma inversão dos valores, usos e sentidos
da máquina pública que passa a ser interpretada sob a lógica individualista e
neoliberal de metas e crescimento. Pouco se discutiu políticas e garantias
sociais por parte dos candidatos eleitos, o ponto foi completamente outro. “Crescimento”,
“sair da crise”, “recuperar a confiança”, “voltar a ser grande”.
O foco dessas campanhas é com as pessoas que rejeitam a
política ou que estão descrentes com ela. A apolitização e banalização da
política propicia uma “entrega” por parte da população para figuras como Trump. Como o personagem virtual, Waldo, seu discurso dialoga com a desilusão do sistema político, uma espécie de
salvação de alguém de fora dos quadros institucionais, alguém com vontade, que “diz
o que pensa”. Sua campanha também ancorada pelo discurso do ódio e
intolerância, embora assuste e cause repúdio de uma parte da população, representa
uma rebeldia em relação à política tradicional, sustentada por uma figura indomável e uma forma de representar alguma mudança, independente de qual o rumo
dela.
Ora sob a égide do empreendedorismo para o sistema público
ora sustentado pela “não política”,
tais discursos omitem pontos importantes do debate. Uma é o reconhecimento da
própria ideologia desse discurso, que visa afastar cada vez mais a população do
fazer política. E outra diz respeito
as ações e metas desses governos, ditas nas entrelinhas, cada vez mais
neoliberais, das propostas de privatização e de redução de gastos com
seguridades sociais.
É preciso, sobretudo, compreender que o campo da politica
está muito além da política institucional e burocratizada. Apesar dos
retrocessos há muitas resistências acontecendo. Se a grande mídia não noticia,
criemos novas e outras mídias. É preciso alargar nossa concepção de política e
compreender que uma pixação é política, uma roda de conversa em praça pública é
política, que as ocupações são política, que diálogo é política. Em todos os cantos há gritos clamando por
outras formas de enxergarmos, compreendermos a política. Essas ações reinventam,
deslocam e re-significam a própria política institucional, que precisa ser oxigenada
por outros olhares, visões de mundo e novos espaços. Ela está em disputa. O
esvaziamento e banalização da política interessa as elites que sempre estiveram
no poder. As esquerdas e os movimentos sociais que lutam dentro da política
institucional precisam sair dos livros e manuais para se reinventarem e
aprenderem com as periferias, com os secundaristas e com tantas outras vozes silenciadas
não ouvidas às outras formas de se fazer e vivenciar política.