terça-feira, 10 de outubro de 2017

A revolução será feminista ou não será! Futebol feminino é questão de poder!


Proponho aqui um exercício imaginativo: como estariam os noticiários esportivos, os jornais, os bate-bola, as rodas de conversa caso o Tite fosse demitido e em seguida diversos jogadores da seleção brasileira, contrários a decisão da CBF, anunciassem que não mais atuariam pela seleção como forma de protesto a autoritária decisão?

Realmente essa é uma cena difícil de se vislumbrar. Mas não é preciso exercícios de futurologia para deduzir a quantidade de notícias que estariam circulando pelas redes sociais, programas esportivos e rodas de conversa do cotidiano. E o apoio e apelo popular, é possível imaginar também?
Emily Lima

Há cerca duas semanas a treinadora da seleção feminina de futebol Emily Lima foi demitida após reunião com o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) Marco Polo de Nero. Emily foi a primeira mulher a treinar a seleção brasileira e também a primeira a ser afastada em tão pouco tempo de atuação, cerca de 10 meses. 

Após o anuncio de sua saída, ficou acertado que Oswaldo Alvarez, o Vadão, ex-técnico da seleção feminina que saiu em novembro de 2016 sem nenhum resultado expressivo, voltaria a ocupar o cargo. A notícia gerou revolta e protesto por parte das jogadoras, não apenas por defenderem a atuação da Emily, mas por denunciarem a falta de diálogo e ao péssimo tratamento em que as atletas estão submetidas.
Cristiane "Tentei de coração, mas eu não tenho mais forças".

Começou com a atacante Cristiane, maior artilheira de futebol em jogos Olímpicos com 14 gols, o anúncio que deixaria de jogar pela seleção brasileira. No dia seguinte, Francielli e Rosana, respectivas meia e lateral da seleção também pronunciaram sua saída. Fran foi enfática:

“todas as atletas estavam satisfeitas com o trabalho mesmo com os resultados negativos. Chegamos a solicitar a permanência dela e da comissão, mas não foi suficiente. E também não é só por isso. Também principalmente por quem retornou (...). Não vejo necessidade e não vejo coerência da minha parte fazer um trabalho onde eu não acredito que possa dar certo (...) Eu não tenho nada contra o Vadão simplesmente estou contra a omissão dele em relação à alguns casos e quem decidia todas as coisas, quem fazia tudo era o Fabrício e como foi informado agora, que a comissão toda está voltando dificilmente eu acredito que vá mudar alguma coisa (...) É muito triste, me sinto triste depois de 12 anos servindo a Seleção Brasileira, desde as categorias de base até a principal, tomar essa decisão.“ (Fran, meia do Avaldsnes Idrettslag, da Noruega)

Em seguida, a zagueira Andréia Rosa, que atuou na seleção brasileira por 7 anos, também abandona a seleção, elogia a antiga comissão da Emily e faz um apelo: “CBF e Marco Aurélio, pelo amor de Deus, vocês não sabem o que é o futebol feminino, vocês não vestem a camisa. Vocês tem que colocar pessoas que fazem a diferença aí dentro.”

Depois foi a vez da meia e lateral Maurine declarar sua aposentadoria, completando 5 atletas a debandarem a seleção brasileira como forma de protesto político. Os pronunciamentos das jogadoras apontam o constante assédio moral que eram submetidas "cansei de ouvir de diretor que só sobrevivemos por conta de dinheiro do futebol masculino", disse Cristiane ao anunciar sua saída, e indaga "se isso acontece porque não cria um plano para que possamos depender de nós mesmas?". 

A atitude de coragem das jogadoras impulsionou também algumas ex-jogadoras, reconhecidas nacional e internacionalmente, como Formiga, Sissi, Márcia Tafarel, Juliana Cabral, dentre outras, a se posicionarem contra a CBF, exigindo mudanças estruturais, desde a falta de liderança de mulheres em cargos e comissões de administração, gerência e deliberação até ao financiamento e apoio a todos os níveis do futebol feminino no país.

Há um consenso quando o assunto é crítica a CBF no que diz respeito a sua cartolagem e estrutura hierárquica, seu estatuto, o calendário do futebol brasileiro, valor dos ingressos dos jogos da seleção e, obviamente, corrupção.

A CBF há anos tem sofrido denúncias: o atual presidente, Marco Polo Del Nero, é investigado pelo FBI em esquemas de corrupção com a FIFA, tanto por recebimento de propina em contratos de marketing da CBF quanto de amistosos da seleção brasileira.  Os ex-presidentes também estão na mira da justiça: Ricardo Teixeira é acusado de 4 crimes de corrupção, entre eles processos de licitação da Copa do Mundo, lavagem de dinheiro e falsificação de documentos públicos e José Maria Marin, cumpre prisão domiciliar em Nova York desde dezembro de 2015 é acusado de fazer parte de uma quadrilha que cobrava propina de empresas de marketing esportivo em troca de contratos de propaganda e transmissão de competições como Copa América, Libertadores e Copa do Brasil. Também responde por fraude financeira e lavagem de dinheiro.

Mas é claro que os setores mais progressistas também vão atrelar a essa gama de críticas a falta de investimento e apoio ao futebol feminino. No geral, muitos bradam “apoio ao futebol feminino” mas na prática pouco se discute em questões objetivas como a criação de um Comitê do Futebol Feminino dentro da CBF, representatividade de mulheres dentro do conselho de administração, campeonatos permanentes nacionais e estaduais.

Não adianta se manifestar pró-futebol feminino sem questionar a estrutura majoritariamente masculina e sem representatividade nos quadros das Federações e da Confederação. Representatividade importa e significa abrir os olhos e escutas para as demandas das mulheres dentro do futebol.

Sobre a saída da Emily:

A justificativa da demissão de Emily por falta de resultados não se sustenta: seu aproveitamento nos jogos foi mais de 55% e todos realizados em amistosos. Foram 5 derrotas em 13 jogos disputados, dentre eles com seleções como a Alemanha e EUA, países referência de estrutura e suporte ao futebol feminino.

Além disso, sua atuação vai além dos resultados: quando assumiu a seleção ao final de 2016, não havia qualquer planejamento para o ano seguinte. Emily organizou o calendário com um planejamento de jogos até 2018. A coordenação técnica não deu qualquer respaldo para a atuação dela e a relação com o Marco Aurélio Cunha, coordenador do futebol feminino da CBF, nunca foi favorável mas de descrédito em relação a seu trabalho atuação.

É um tanto quanto incoerente esse tipo de justificativa quando não temos uma estrutura nacional forte para o futebol feminino: um calendário reduzido, as ofertas de competições são irregulares e não permanentes, sem contar na falta de investimento em categorias de base por parte de quase todos os clubes brasileiros e na disparidade salarial de gênero dentro da própria seleção brasileira.

Por fim, o anúncio da volta de Vadão para treinar a equipe mostra como a decisão não foi pautada unicamente no rendimento e resultados. Qual seu mérito para assumir a seleção novamente? Qual o futebol diferente do que já conhecemos ele tem a oferecer a seleção feminina? Em seus 30 meses de seleção seu aproveitamento foi de 76%, período em que a seleção foi eliminada nas oitavas de final do Mundial e ficou em quarto lugar nas Olimpíadas do Rio em 2016. Após deixar a seleção, ele retornou ao futebol masculino assumindo o Guarani na série A2 do Paulista, sendo eliminado na primeira fase sem conseguir o acesso a série A1 do Estadual.

Isso evidencia como a CBF não possui qualquer plano para o futebol feminino: não foi cogitado sequer outros técnicos atuantes em times da série A do futebol brasileiro para assumir a seleção feminina. A disparidade de importância em relação ao futebol masculino é gritante. 
A decisão de demissão da Emily foi política e expressa o autoritarismo da CBF que se recusou em dialogar e ouvir as jogadoras que insistiram no trabalho dela.

 Marta é o Pelé de Saias”: apenas parem

Marta, ícone e referência do futebol feminino, apesar de se manifestar favorável a manutenção da Emily como treinadora não aderiu aos protestos de suas companheiras afastadas e apelou para que as jogadoras revisassem sua decisão em prol da seleção.

Tal pronunciamento gerou críticas e levou a comparação com os tantos despautérios já pronunciados por Pelé. Não podemos aqui individualizar a crítica em relação a CBF e seus dirigentes na figura da maior jogadora da seleção. É desvincular o debate de seu foco central e atribuir um peso maior em seu posicionamento frente as demais companheiras da equipe.

Mas Marta não é Pelé de saias a começar que ela não precisa de uma referência masculina para validar seus feitos no futebol brasileiro. Eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo e a maior artilheira da história da seleção brasileira (masculina e feminina) com 101 gols, Marta, como todas as mulheres que atuam no futebol feminino, não teve e não tem os mesmos holofotes, o mesmo salário, as mesmas oportunidades de competição e campeonatos que o futebol masculino. Nem ao menos a camisa 10 da seleção brasileira com seu nome existe e é comercializada no mercado. A comparação não se sustenta porque há uma hierarquia e desigualdade estabelecida marcada fortemente pela questão de gênero. São apenas 40 anos de legalidade do futebol feminino, portanto há uma desvantagem cultural e histórica.

Marta, apesar do reconhecimento enquanto a maior jogadora da seleção feminina brasileira, também sofre das mesmas opressões e desigualdades da estrutura autoritária e machista do futebol brasileiro. Atrelar a crítica a ela, além de não estratégico, desvia o foco de uma questão central: o descaso com o futebol feminino por parte das torcidas, dos clubes, das federações e da mídia.

Mais do que apontar o dedo para a Marta porque não voltar os olhos para a falta de posicionamento político por parte dos atletas brasileiros e da própria mídia em relação ao apoio e divulgação do movimento realizado pelas jogadoras da seleção contra a demissão da Emily e em apelo a CBF por reformas em prol da igualdade de gênero?? Há muita luta a ser feita...

Debandada da Seleção: Luta histórica e resistência!

A saída das 5 jogadoras da seleção brasileira, mais que um ato de protesto e coragem é fruto de uma relação perversa a qual as mulheres são submetidas dentro de uma estrutura historicamente machista que desacredita o trabalho das jogadoras. Não por acaso, na carta aberta das veteranas do futebol feminino o primeiro ponto por elas destacado é em relação ao péssimo tratamento e desrespeito para com as líderes e jogadoras.

A falta de apoio e estímulo ao futebol feminino em todos os níveis, embora pareça um assunto "batido" ainda tem muito a ser dito e realizado frente aos poucos avanços ocorridos para mudar essa realidade. A inclusão obrigatória de mulheres dentro do Conselho da FIFA e a obrigatoriedade da manutenção de times femininos por parte de clubes para disputar a Libertadores são algumas das conquistas recentes e ao mesmo tempo tardias.

A CBF precisa compreender a importância da paridade de gênero em seus órgãos legislativos e nas decisões do futebol. Essa falta de mulheres em toda estrutura futebolística – nos gramados, nas comissões técnicas, nos órgãos administrativos, nas diretorias, no jornalismo – repercutem no fracasso do futebol feminino no Brasil hoje: com campeonatos não regulares, na profissionalização tardia das meninas, na ausência de categorias de base, na falta de carteira assinada na maioria dos times femininos, na reprodução de estereótipos de gênero, na falta de representatividade na mídia, na ausência das torcidas organizadas nos campeonatos femininos.

Os recentes acontecimentos foram motivados por tudo isso e é preciso que se leve a sério a aposentadoria forçada de 5 jogadoras de destaque e a carta aberta das veteranas como fruto dessa situação insustentável. A criação de um Comitê de Futebol Feminino dentro da CBF é um importante passo para um gerenciamento e desenvolvimento do futebol feminino adequado em diálogo com as demandas das mulheres. Uma luta histórica foi travada, o silêncio foi rompido mesmo que isso custe caro a carreira das jogadoras. Carreira essa conquistada a base de muito esforço e de pouco apoio dos clubes, do Estado, das torcidas e da mídia. 

É por isso que falar de futebol feminino sem falar de machismo é impensável. Não se combate uma estrutura hierárquica e desigual sem embate. É preciso nomear os fatos e entender as relações que atravessam a história do futebol brasileiro marcados por diferenças de gênero, raça, classe, etnia e sexualidade, senão continuaremos fazendo das diferenças, que são positivas, em desigualdades.

Mais que isso, é preciso não calar nossas vozes, nossos gritos históricos de insubordinação. Modificar esse histórico de desigualdade de gênero é alterar as relações de poder. Alterar as relações de poder é re-discutir privilégios, por isso há tanta resistência e falta de apoio. O futebol feminino existe por luta e resistência e não há transformação sem enfrentamento. 




quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Sobre Trumps, Crivellas, Dórias e a Banalidade da Política.

Em um dos episódios da série Black Mirror, intitulado "The Waldo Moment", Waldo é um avatar, um personagem fictício de um programa televisivo que ganha popularidade por criticar e satirizar os políticos de maneira escrachada. O fato de Waldo “dizer as verdades” faz com que o personagem caia nas graças do público, nem tanto pela postura política, mas pelo humor que faz das situações políticas e dos políticos. A população quer e prefere votar em Waldo, o mascote virtual, do que nos candidatos existentes. Mesmo sabendo que Waldo não solucionará nada, a descrença na política, a generalização e a falta de participação faz com que as pessoas se identifiquem e criem empatia com ele. Waldo representa a banalização da política e a indiferença em relação à vontade política e democrática.

A ideia de que “político é tudo igual” e que as eleições “vão dar na mesma” é resultado de um processo histórico e que possui diferenças e especificidades locais. De todo modo, podemos ter um ponto de análise comum que é o neoliberalismo do século XXI e o esvaziamento do senso coletivo devido a transformações estruturais das relações sociais, de trabalho, de mercado, dentre outras. Os valores meritocráticos, de consumo e de recompensa individual trazem uma nova dimensão social que esfacelam uma suposta unicidade da classe trabalhadora. Há múltiplas identificações do sujeito que se contradizem em alguns momentos. Além disso, temos o papel da grande mídia como propulsora do discurso da racionalidade do indivíduo como empreendedor de si e no esvaziamento da noção de política, que passa a assumir conotação negativa.

Política” passa a significar, para boa parcela da população, um meio pela qual pessoas defendem interesses individuais ou de seus grupos, uma forma de obter cargos, postos de trabalho e prestígio. Essa compreensão da política para uso de fins privados escamoteia a importância da construção da esfera pública, da garantia de direitos, da ampliação dos canais de comunicação e participação e das tantas outras políticas não institucionalizadas.

A utilização da “não política” nas campanhas eleitorais trazem um esvaziamento preocupante já que pouco interessa o projeto e plano político dos candidatos, o quanto isso dialoga com nossas realidades e a participação e inclusão de diversos setores na proposta a ser implementada. Ao enxergar o campo da política institucional como algo distante e genérico, em virtude da descrença de nosso sistema representativo, a emergência de campanhas conservadoras ganham força em razão da busca por um “salvador da pátria”.

No Brasil, a redemocratização gerou impulsos e participação em torno da formulação da Constituição de 1988, em que diversos setores da população, mulheres, negros, indígenas, população LGBT, setores ligados aos movimentos ambientais, trabalhadores rurais e urbanos passaram a reivindicar direitos específicos e diferenciados. Após as eleições do PT e a implementação de algumas políticas voltadas para o combate às desigualdades sociais, muitos setores dos movimentos sociais foram chamados para fazer parte da própria gestão do governo. A ampliação da participação na política institucional ainda ficou bastante incipiente.
Vamos cuidar das pessoas”, disse Marcelo Crivella em seu primeiro discurso. Esse lema do cuidado é entender a política sob a lógica paternalista, de um punho forte para governar e proteger. O cidadão não tem espaço para participação e não vê, dentro da estrutura burocrática, espaço para a construção política. E veja que tal “proteção” assume diversos sentidos: paternalismo, protecionismo, patriotismo, nacionalismo. Proteger dos de “fora”, dos imigrantes, dos mexicanos, como diz abertamente Donald Trump, presidente recém eleito nos Estados Unidos.

Ao se utilizarem de campanhas que negam a política (como se isso fosse possível!) pouco se diz sobre os projetos e propostas desses candidatos. Isso diz respeito ao lugar de fala. De onde falam? Com qual setor da sociedade dialogam? Qual suas propostas econômicas? Há aqui uma construção de que assumir a “ideologia”, assumir de onde se fala, é algo ruim. “Se tem ideologia, tem doutrinação”. Como se o apelo da “não política” não fosse também político e ideológico.

João Dória se consagrou com a máxima “não sou político, sou administrador”.
Enquanto Marcelo Freixo pautava sua campanha na participação, Crivella venceu com o discurso do estimulo ao empreendedorismo.
É a lógica neoliberal sobre a política, os indivíduos e a vida pública. A política passa a ser compreendida sob o viés de uma grande empresa, que precisa crescer e atingir bons resultados e não assegurar garantias sociais, acesso a bens fundamentais como saúde e educação, direitos humanos e combater desigualdades. Há uma inversão dos valores, usos e sentidos da máquina pública que passa a ser interpretada sob a lógica individualista e neoliberal de metas e crescimento. Pouco se discutiu políticas e garantias sociais por parte dos candidatos eleitos, o ponto foi completamente outro. “Crescimento”, “sair da crise”, “recuperar a confiança”, “voltar a ser grande”.

O foco dessas campanhas é com as pessoas que rejeitam a política ou que estão descrentes com ela. A apolitização e banalização da política propicia uma “entrega” por parte da população para figuras como Trump. Como o personagem virtual, Waldo, seu discurso dialoga com a desilusão do sistema político, uma espécie de salvação de alguém de fora dos quadros institucionais, alguém com vontade, que “diz o que pensa”. Sua campanha também ancorada pelo discurso do ódio e intolerância, embora assuste e cause repúdio de uma parte da população, representa uma rebeldia em relação à política tradicional, sustentada por uma figura indomável e uma forma de representar alguma mudança, independente de qual o rumo dela.

Ora sob a égide do empreendedorismo para o sistema público ora sustentado pela “não política”, tais discursos omitem pontos importantes do debate. Uma é o reconhecimento da própria ideologia desse discurso, que visa afastar cada vez mais a população do fazer política. E outra diz respeito as ações e metas desses governos, ditas nas entrelinhas, cada vez mais neoliberais, das propostas de privatização e de redução de gastos com seguridades sociais.


É preciso, sobretudo, compreender que o campo da politica está muito além da política institucional e burocratizada. Apesar dos retrocessos há muitas resistências acontecendo. Se a grande mídia não noticia, criemos novas e outras mídias. É preciso alargar nossa concepção de política e compreender que uma pixação é política, uma roda de conversa em praça pública é política, que as ocupações são política, que diálogo é política. Em todos os cantos há gritos clamando por outras formas de enxergarmos, compreendermos a política. Essas ações reinventam, deslocam e re-significam a própria política institucional, que precisa ser oxigenada por outros olhares, visões de mundo e novos espaços. Ela está em disputa. O esvaziamento e banalização da política interessa as elites que sempre estiveram no poder. As esquerdas e os movimentos sociais que lutam dentro da política institucional precisam sair dos livros e manuais para se reinventarem e aprenderem com as periferias, com os secundaristas e com tantas outras vozes silenciadas não ouvidas às outras formas de se fazer e vivenciar política.


sábado, 18 de junho de 2016

Para além das tragédias: sobre violências e fascismos cotidianos

Para além da comoção nacional dos absurdos ocorridos tanto do massacre em Orlando(EUA) quanto dos estupros coletivos ocorridos no Rio de Janeiro e Piauí as tragédias trazem questões importantes para o centro das discussões ao ganhar espaço no debate público e nas mídias. Por isso, um olhar crítico em relação aos fatos se torna importante para não se tornarem aberrações, casos extraordinários que muito alimentam as manchetes dos jornais mas pouco contribuem para uma discussão produtiva no sentido de problematizar e combater preconceitos enraizados.
Quando levamos pelo lado sensacionalista o caso se torna isolado e não relacionamos com práticas cotidianas e é justamente esse o ponto que precisamos nos agarrar para nossas ações e resistências do dia a dia. Afinal tais violências são cotidianamente alimentadas por atos, gestos e discursos de ódio e não são casos tão distante de nossas realidades...
Um desses caminhos de tornar as tragédias enquanto aberrações é a patologização dos agressores enquanto o louco, o desviante, o doente, o terrorista.... e uma forma de não nos culpabilizarmos pelo ocorrido. Encarar os agressores enquanto o “outro” faz com que o problema se torne distante e corrobora para não associarmos com os microfascismos cotidianos, com nossas práticas machistas e homofóbicas, com nossos relacionamentos abusivos, com nossas opiniões conservadoras sobre o “comportamento adequado” de mulheres, gays, transexuais. Aí o atentado e o estupro se tornar coisa de gente maluca, paranoica, que nada se relaciona com nossa cultura do estupro e a sangrenta realidade.
Certamente os dados sobre violência doméstica no Brasil contrariam esse discurso, muito embora não seja essa impressão que temos no imaginário popular: ao invés do terror de insanos estupradores da rua escura, grande parte da violência cometida contra as mulheres, cerca de 67%, ocorrem por aqueles que elas têm ou já tiverem algum vínculo afetivo, ou seja, companheiros, namorados, conjugues, amantes, ex-companheiros, ex-cônjugues, familiares, amigos, vizinhos, conhecidos.
Com isso, não queremos dizer que o espaço público é de segurança para as mulheres e que nas ruas esse tipo de violência não ocorre, mas que esse imaginário do estuprador enquanto o outro desconhecido, o doente, é apenas uma forma de não questionarmos a cultura do estupro presente em nosso dia a dia, em nossas práticas, e, em como contribuímos para que casos extremos ocorram.
Afinal, -aparentemente- ninguém manifestará a favor de um estupro de 30 homens em uma menor de idade ou de uma chacina em uma boate gay. Além de reverberar como um caso isolado, nos faz crer que o machismo, racismo, homofobia, transfobia, lesbofobia, bifobia, apenas se manifestam desta forma. Assim, colocamos o problema enquanto distante e de perto nossas relações e hierarquias continuam intactas:
em casa as mulheres (esposas, irmãs, mães, amigas) continuam sendo as únicas responsáveis pelas tarefas domésticas e cuidado dos filhos, no trabalho as mulheres continuam sendo alvo de piadas em relação a suas capacidades intelectuais ou sobre sua aparência física, além de ganhar menos exercendo igual função, os gays que dão “pinta” são rejeitados em entrevistas de emprego, são motivo de piada no dia a dia do trabalho e de agressões nos espaços públicos, no rua as mulheres continuam sofrendo cantadas invasivas, assédios morais e físicos, de noite as travestis são espancadas pelo simples fato de serem travestis, na escola as meninas são frequentemente desacreditadas de suas capacidades e habilidades apenas por serem mulheres, as mulheres negras não se veem representados nos materiais didáticos e as transexuais são expulsas da escola e de seus lares. Na publicidade o corpo da mulher é público e moeda de troca de bens de consumo, nos canais de televisão a escravidão ainda não foi abolida e xs negrxs, quando sub-representados, no geral ocupam papéis estereotipados. Nos jornais e revistas as mulheres são lidas como histéricas, descontroladas emocionalmente e é valorizado um padrão de comportamento do século passado que vinculada a mulher ao espaço privado, recatada e do lar.
A sexualidade das mulheres lésbicas é objetificada e vendida como fetiche unicamente para o prazer masculino. Nas rodinhas de conversa dos bares as mulheres são frequentemente julgadas por seu comportamento, roupas e vida sexual. Em espaços de lazer gays são vistos enquanto promíscuos e qualquer manifestação de carinho com seus companheiros são vistos com desconfiança, ojeriza e desrespeito. 
       Tais exemplos pontuais são apenas uma forma de compreendermos e relacionarmos os casos emblemáticos enquanto práticas de nosso cotidiano que culminam em situações extremas. Não nos enganemos: essa violência é diariamente vivenciada.
Não bastasse tratar o estupro ocorrido no Rio de Janeiro enquanto bizarro em que os agressores são patologizados, para não se verem refletidos nessa realidade e assim compartilhar da culpa de uma sociedade que legitima e reproduz a cultura do estupro, as narrativas em torno do caso passaram ora a negar o ocorrido ora desqualificar a vítima. O passado da vítima foi vasculhado e fatores como: ter filho, usar drogas e frequentar bailes funk passaram a deslegitimar o estupro, ou melhor, a justificar a violência. A menina se tornou vadia, e nessa lógica, merecia ser estuprada. E as mulheres saíram as ruas, mais uma vez, para gritar pelo direito aos nossos corpos, pela liberdade de poder ser quem quiser, para denunciar a violência que subjuga, humilha e mata, para enfatizar que lugar de mulher é onde ela quiser e escancarar as relações machistas que todas somos submetidas. Escancarar que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e que, portanto, não se trata de um caso isolado, de doentes, mas de relações hierárquicas e desiguais que acarretam em violência.
       E dizer que essa violência é diariamente vivenciada também significa trazer para mais perto as tragédias recém ocorridas quando os dados da homofobia mostram uma realidade bastante sangrenta de que no Brasil acontecem 6 atentados de Orlando por ano.
  O Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil publicado em 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR) informa que a intolerância mata e viola diretos humanos já que naquele ano ocorreram pelo menos 310 homicídios com a população LGBTT. [1]
  Segundo os relatórios do Grupo Gay Bahia (GGB) esse número praticamente se mantém nos anos seguintes com o registro de 312 mortes de gays, travestis e lésbicas no ano de 2013, de 336 mortes, incluindo 9 suicídios, no relatório de 2014 e de 318 assassinatos no ano de 2015. 
    As transexuais e travestis apresentam um risco 15 vezes maior de serem assassinadas o que torna o Brasil líder mundial dessa chacina tantas vezes invisibilizada: mais da metade dos homicídios praticados contra transexuais em todo mundo ocorrem no Brasil. Parece mais fácil a comoção de ataques que são distantes, como o mais recente ocorrido nos EUA. Homofóbicos são os outros. O caso se isola e culpa escorre por entre os dedos como água, já que nada se relaciona com nosso cotidiano opressor.
Quando não patologizado, há a tentativa de não qualificar a motivação do crime por ideologia homofóbica e aí o terrorismo, termos por vezes etnocêntrico utilizado para qualificarmos qualquer alteridade, ganha espaço. O terrorista já foi o bárbaro, o monstro, o selvagem, o não-civilizado, o estrangeiro, o outro. O terrorismo é o mal a ser combatido que justifica ataques contra estrangeiros, refugiados, minorias étnicas e que tem a legitimidade do Estado.
         Entender o ataque de Orlando, ocorrido em uma boate gay, apenas sob o viés terrorista é não reconhecer que um público alvo foi escolhido, a população LGBTT, e tornar invisível suas pautas, suas demandas e, portanto, as possíveis soluções para o enfrentamento deste tipo específico de violência.
Encarar o agressor – homofóbico - unicamente pela lógica terrorista pode. O que não pode é encarar como terrorismo de estado as ações da polícia que espanca e mata brutalmente Luana Barbosa dos Reis, mulher lésbica, negra e pobre por se recusar a ser revistada por um policial homem, da mesma polícia que agride e desfigura o rosto da travesti Verônica dentro da cadeia e que atira, durante uma troca de tiros, na trabalhadora negra, mãe de quatro filhos, Cláudia da Silva Ferreira, arrastando seu corpo, pendurado no para choque da viatura, pelo chão por cerca de 250 metros.
      Os direitos das chamadas minorias[2] também tem sido alvo de ataques de uma ofensiva conservadora. Na política, bancadas conservadoras tentam instituir a “cura gay” através de tratamentos psicológicos e proibir o debate de gênero e sexualidade nas escolas. Deputados de dez partidos querem anular o decreto presidencial (nº395/2016) da então presidenta Dilma, que institui o uso do nome social de travestis e transexuais nos órgãos da administração pública direta e indireta.
    Apesar dos dados alarmantes sobre homofobia o projeto em tramitação pela criminalização de ataques contra a população LGBT encontra resistência e dificuldade de aderência. Ao contrário, presidente da câmara afastado, Eduardo Cunha, propõe retomada dos projetos de criação do dia do orgulho heterossexual e da criminalização do preconceito e discriminação contra heterossexuais. O mesmo deputado também propõe o projeto de lei nº5069 que representa verdadeiro retrocesso em relação aos direitos historicamente conquistados quanto a atenção e cuidado com as vítimas de violência sexual, dificultando as orientações, atendimento e os próprios casos em que o aborto é legalizado no Brasil.
      A própria configuração atual da política brasileira é a representação desse retrocesso: se nas eleições de 2014 a participação das mulheres já representava menos de 10% do total de parlamentares, com a posse do presidente interino Michel Temer, todos os ministérios passaram a ser comandados por homens brancos e marcados pela exclusão de importantes pastas, como o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos.
    Em momento de negação e retrocesso de direitos, a cultura do ódio se fortalece e atrocidades como os ocorridos nas últimas semanas veem à tona. A homofobia, o machismo, o racismo, cada vez mais institucionalizadas pelo Estado, legitimam situações extremas e práticas autoritárias rotineiras. As tragédias nos informam sobre os fascismos interiorizados e vivenciados cujo ódio é banalizado, naturalizado, não responsabilizado, não refletido, não questionado. O fascismo tem repulsa ao conhecimento e aversão a qualquer alteridade.
     Quando uma mulher, um gay, uma travesti causa incomodo ou abjeção por não corresponderem a um determinado padrão e a reação é autoritária, violenta e não dialógica trata-se de uma questão de poder. E onde há poder há resistência. A lógica de não compreensão do outro, das diferenças, das alteridades, sustentadas por uma política institucional não representativa e com ataques aos direitos das minorias, é solo para que essas violências brotem e que o ódio torne o diferente alvo de ataques e repulsa nas relações cotidianas. Por isso estar em diálogo é conseguir compreender as diferenças sem aniquilá-las. Os gritos das ruas são resistência de quem pede outra forma de ver o mundo, outra forma de serem enxergadas, compreendidas e vivenciadas. Precisamos entrar em contato, ouvir sempre e mais as vozes silenciadas pelo autoritarismo.
          


[1] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais 
[2] Minoria é pensada não no sentido quantitativo, mas na possibilidade de voz ativa e de participação e interferência em instâncias decisórias do poder. Segundo Deleuze (1992, p.218) uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria e o que define a maioria é o modelo ao qual é preciso estar conforme, como exemplo o europeu médio adulto macho habitante das cidades. Para Deleuze a minoria não tem modelo, é um devir, um processo e o povo é sempre uma minoria criadora. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Meritocracia e racismo.


Nas últimas semanas uma série de polêmicas surgiram nas redes sociais e trouxeram a tona algumas questões importantes para discussão do racismo no Brasil: o veto da FIFA aos atores Lázaro Ramos e Camila Pitanga, cotados inicialmente para apresentar o sorteio dos jogos da Copa do Mundo 2014, e a escolha de Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert
. As discussões levaram ao questionamento do racismo no Brasil, da neutralidade da mídia, a problematização da sub representação do negro nos meios midiáticos e naturalização do branco como norma da humanidade.



Poxa, sejamos sinceros, ser o casal do sorteio da FIFA não é lá tão digno assim. Pelo menos não para o que a Copa do Mundo está acarretando no Brasil e o que significa a instituição FIFA no futebol. Na verdade até acho que a escolha do casal gourmet Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert é muito mais a cara da Copa, ainda mais se pensarmos nas consequências sociais dela. Mas a questão colocada não é essa. Diariamente vivenciamos práticas racistas, mas mesmo assim o Brasil dorme tranqüilo todas as noites já que preconceito racial é coisa do passado, daquela época não tão distante em que havia escravidão. Afinal, até a Globo já teve uma protagonista negra, e coincidentemente a novela levou o nome “Da cor do pecado”, que também “por acaso” dentro o vasto leque de opções, a mesma atriz, Taís Araújo, interpretou a segunda e última novela, cuja protagonista era negra.

E é por isso que o caso da escolha do casal da Fifa passa a se tornar emblemático: é necessário agarrar a tais fatos que ganham destaque na mídia (afinal, envolvia a FIFA, a Copa do Mundo e atores globais) para tocar o dedo na ferida do racismo institucional de nossa sociedade. Essa é a deixa para discutir e problematizar o que ninguém no Brasil - construído como harmônico, misturado, alegre - quer: evidenciar que o Brasil é racista e que, portanto, todos praticamos o racismo.



Certamente teria muitos outros casos para elencar, mortes para escancarar, Amarildos torturados, Douglas mortos sem motivos, ofensas e preconceitos pichados nos muros das universidades públicas contra alunos africanos e negros, mas que certamente não duraria uma semana de debate na mídia. E é aí que este caso, aparentemente fútil e sem importância, ganha uma nova proporção na discussão. Afinal, se o racismo não fosse tão violento e vivo talvez essa notícia de fato não faria diferença e a resposta da Fernanda Lima “só porque sou branquinha?” poderia até fazer sentido. Mas na realidade que estamos hoje não podemos simplesmente separar os fatos e achar que uma coisa não influencia na outra e que não somos responsáveis por isso.


Tal problematização não significa personificar a discussão, a Fernanda Lima não se tornou a vilã racista, muito embora tenha se mostrado um tanto quanto ignorante logo após a polêmica ter eclodido ter iniciado seu programa cantando a música “cada macaco no seu galho”, enfim, cada um que interprete como quiser, mas não sejamos ingênuos. A questão é levantar um ponto bem claro sobre as relações raciais no Brasil e que nós brancos, me assumo neste barco, saibamos reconhecer nossos privilégios. E a meritocracia, neste sentido, é o maior argumento utilizado para deslegitimar qualquer tentativa de democratização, seja social, racial, de gênero ou sexualidade.


Mais uma vez: sim, o casal escolhido já havia realizado trabalhos para a FIFA o que pode sim justificar a escolha deles e não de outros. Mas dentro de um racismo institucional é de se admitir que as oportunidades que uma pessoa branca, oriunda de família rica, dentro dos padrões de beleza exigido pela mídia são muito maiores que de uma pessoa negra, e neste caso, seja ela de classe média alta ou não. Reconhecer privilégios não é choramingar “ah, só porque eu sou branquinha?” e sim admitir seu mérito na questão mas não achar que ele sozinho explica o mundo dentro de um sistema injusto e desigual . Você pode assumir seu mérito, mas sem descartar que o racismo institucional e a desigualdade social a que estamos inseridos faz com que você, branquinha, tenha mais oportunidades, mais portas abertas, mais mãos estendidas do que uma mulher negra. E pode dormir com o travesseiro mais pesado por que sim, você se beneficia da lógica e sistema racista.



Por isso, pode ser um caso aparentemente esdrúxulo – escolha do casal FIFA - e a platéia da direita deve vir com aquele papo sem sentido de “politicamente correto”. Mas não basta escolher uma única lente para ver o mundo, e em especial o Brasil. A luta pelo racismo é diária, e evidenciar práticas racistas, questionar a meritocracia e escancarar desigualdades estruturais fazem parte da tentativa de mudança da leitura que fazemos de nossa sociedade. A escolha do casal FIFA permite refletir sobre a invisibilidade e estereotipia dos negros nos meios midiáticos e a naturalização do branco como correto, norma e padrão. Só se combate o racismo quando admitimos sua existência. E é por isso que casos como esses não devem ser descartados, eles ajudam a problematizar o que o nosso Brasil – construído como alegre e harmonioso – não quer admitir.  

sexta-feira, 21 de junho de 2013

As contradições dos protestos no Brasil



Engraçado, mobilizador e assustador. São essas minhas primeiras impressões sobre a repercussão que o Movimento Passe Livre tomou na mídia brasileira, mundial, nos lares, e principalmente, nas ruas. O movimento, que começou com uma reivindicação específica, assumiu proporções gigantescas: das mais libertárias as mais conservadoras.

Começo com engraçado... porque o movimento contra o aumento da passagem do ônibus se iniciou há semanas e o número de críticas, como sempre ocorreu no Brasil, contrárias à mobilização dos Movimentos Sociais, eram gigantescas e como sempre associando os manifestantes a termos como “baderna”, “depredação” e “vandalismo”. Marchar nos últimos anos era coisa “de quem não tinha o que fazer”, coisa de “arruaceiro”. Quem  participou de qualquer mobilização nos últimos anos sabe o peso negativo que a mídia, e a própria população, sempre atribuiu aos ativistas e ainda o baixo número de aderência a causas legítimas.

Movimento Passe Livre

Engraçado, pois os mesmos que criticaram até quarta-feira, dia 12,  mudaram o discurso, como o próprio Arnaldo Jabor, que depois de mais uma das tantas asneiras pronunciadas em que chamou o Movimento de “provocação inútil”, passou a revisar seus conceitos. E por que isso ocorreu? O fato é que depois da manifestação de terça-feira,  em que houve pretexto para os críticos abusarem dos termos pejorativos, por atos isolados de manifestantes, o estado respondeu com a repressão...
Confronto entre a polícia e os jornalistas
E a repressão chegou mais violenta na quinta-feira quando manifestantes, jornalistas e pessoas que circulavam pela região foram todos atingidos pela truculência e violência da polícia ao som de 15 mil manifestantes gritando “Sem Violência”.  Não teve mais como a mídia segurar as informações, visto que, os vídeos gravados por diversos cidadãos já circulavam em todo país pelas redes sociais (inclusive vídeos da polícia depredando a própria viatura como pretexto para agirem de maneira repressiva). Assim, na sexta-feira a grande mídia já mudava de opinião quando o tiro, antes destinado apenas a periferia, atingiu seus jornalistas. A classe média foi finalmente atingida e aí a história mudou. 

Nesta mudança, tanto dos rumos da mídia, que passou a legitimar o protesto em São Paulo após a mira das armas, cujo destino tinha classe e cor definidas, atingiu si próprios, os rumos do próprio movimento também ganharam outras proporções. A partir daí a repercussão do protesto de São Paulo contra o aumento das tarifas do transportes levou a uma mobilização histórica: o número de manifestantes triplicou em pouco espaço de tempo, e a população de diversas cidades no Brasil inteiro saíram para as ruas. Na última segunda-feira, 500 mil pessoas saíram as ruas nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Pará, Bahia, Distrito Federal e é claro, São Paulo.

E é ai que chego no assustador. A manifestação que teve início em São Paulo, por uma pauta bem definida - Contra o Aumento das Tarifas do Ônibus – passou a assumir diversas faces. E o perigo não são as diferentes bandeiras, mas a descaracterização do movimento que surgiu e que tem um objetivo claro a ser estabelecido: redução das tarifas do transporte público, e uma meta: a implementação do passe livre no Brasil. 
De fato não há problema em diversas bandeiras saírem para as ruas e apoiarem os protestos, isso sempre ocorreu. Quando um Movimento Feminista organiza um ato, por exemplo, é comum que outros movimentos sociais e até partidos saiam as ruas para apoiar a causa, apoiar. O que ocorreu a partir de segunda-feira no Brasil é que a causa em si das marchas assumiram novos rumos e, consequentemente, novos e controversos objetivos.

A direita brasileira também foi as ruas
Aí vimos de tudo: manifestantes contra o Ato Médico, contra a Pec-37, a favor da legalização da maconha, ou alguns mais genéricos como a favor da educação, contra a corrupção (ato que nunca entendi muito bem qual a demanda e objetivos... sair as ruas contra a corrupção é como sair as ruas contra a maldade...enfim), contra a Copa do Mundo no Brasil, contra a presidenta Dilma, e por aí vai.
A direção e os objetivos dos protestos assumiram diversas bandeiras, inclusive (ou principalmente) as mais conservadoras. Em alguns momentos dos protestos, ou em alguns setores, parecíamos deslocados do tempo, já que as bandeiras se assemelhavam à Marcha da Família com Deus pela Liberdade (e propriedade privada).
Em uma mobilização que começou com pautas de reivindicação populares ergueram-se cartazes contrários ao programa Bolsa Família. Contradição? A dimensão que as manifestações chegaram no Brasil levantaram as causas mais elitistas e o perigo é onde isso vai parar. Protestar é um meio e não um fim em si, sem demanda não há resposta e protestar contra tudo é o mesmo que protestar contra nada. 

Slogans como “o Brasil acordou” passaram a emergir. Como se apenas agora, que a classe média saiu para as ruas e as descobriu enquanto espaço de circulação pública e fora de seus carros, o Brasil acordou. Protestos, mobilizações e passeatas sempre ocorreram no Brasil, mas nunca levaram à comoção do Estado, da mídia e da população. Os movimentos indígenas, sem terra, sem teto, até mesmo o passe livre, dentre outros, sempre estiveram nas ruas e sempre foram criminalizados e perseguidos. As denúncias das mortes por atropelamento são recorrentes e o genocídio indígena continua latente. No último mês o indígena terena Oziel Gabriel foi assassinado pela polícia militar após o confronto pela tentativa de despejo de uma terra indígena demarcada desde 2011, e outros casos similares ocorreram mas foram pouco noticiados, como o indígena “atingido por tiros” em Paranhos-MS. 

Relações de poder e privilégio continuam bem demarcadas
O Brasil não acordou porque nunca esteve dormindo, e as relações de privilégio e de poder ainda continuam bem demarcadas. Não é novidade no Brasil que o menino branco de classe média que praticou vandalismo no protesto teve seu pedido de prisão liberado em troca de fiança, enquanto que o menino preto, da periferia, será o primeiro a ser preso. A pobreza no Brasil ainda tem cor e a violência ainda é marcada por relações de gênero. 

Na volta para a casa, a população retorna para seus lares, privilégios e hierarquias, que continuam muito bem estabelecidos e em seu devido lugar, afinal, certamente para grande parte da multidão que caminhava nas ruas, não era disso que se tratava.