Para
além da comoção nacional dos absurdos ocorridos tanto do massacre em Orlando(EUA) quanto dos estupros coletivos ocorridos no Rio de Janeiro e Piauí as tragédias trazem questões importantes para o
centro das discussões ao ganhar espaço no debate público e nas mídias. Por
isso, um olhar crítico em relação aos fatos se torna importante para não se
tornarem aberrações, casos extraordinários que muito alimentam as manchetes dos jornais mas pouco
contribuem para uma discussão produtiva no sentido de problematizar e combater preconceitos enraizados.
Quando
levamos pelo lado sensacionalista o caso se torna isolado e não relacionamos
com práticas cotidianas e é justamente esse o ponto que precisamos nos agarrar
para nossas ações e resistências do dia a dia. Afinal tais violências são
cotidianamente alimentadas por atos, gestos e discursos de ódio e não são casos
tão distante de nossas realidades...
Um
desses caminhos de tornar as tragédias enquanto aberrações é a patologização dos agressores enquanto o louco,
o desviante, o doente, o terrorista.... e
uma forma de não nos culpabilizarmos pelo ocorrido. Encarar os agressores
enquanto o “outro” faz com que o problema
se torne distante e corrobora para
não associarmos com os microfascismos cotidianos, com nossas práticas machistas
e homofóbicas, com nossos relacionamentos abusivos, com nossas opiniões
conservadoras sobre o “comportamento adequado” de mulheres, gays, transexuais.
Aí o atentado e o estupro se tornar coisa de gente maluca, paranoica, que
nada se relaciona com nossa cultura do estupro e a sangrenta realidade.
Certamente
os dados sobre violência doméstica no Brasil contrariam esse discurso, muito
embora não seja essa impressão que temos no imaginário popular: ao invés do
terror de insanos estupradores da rua escura, grande parte da violência cometida
contra as mulheres, cerca de 67%, ocorrem por aqueles que elas têm ou já
tiverem algum vínculo afetivo, ou seja, companheiros, namorados, conjugues,
amantes, ex-companheiros, ex-cônjugues, familiares, amigos, vizinhos,
conhecidos.
Com
isso, não queremos dizer que o espaço público é de segurança para as mulheres e
que nas ruas esse tipo de violência não ocorre, mas que esse imaginário do
estuprador enquanto o outro desconhecido,
o doente, é apenas uma forma de não
questionarmos a cultura do estupro presente em nosso dia a dia, em nossas
práticas, e, em como contribuímos para que casos extremos ocorram.
Afinal,
-aparentemente- ninguém manifestará a favor de um estupro de 30 homens em uma menor
de idade ou de uma chacina em uma boate gay. Além de reverberar como um caso
isolado, nos faz crer que o machismo, racismo, homofobia, transfobia,
lesbofobia, bifobia, apenas se manifestam desta forma. Assim, colocamos o
problema enquanto distante e de perto nossas relações e hierarquias
continuam intactas:
A sexualidade das mulheres lésbicas é objetificada e vendida como fetiche unicamente para o prazer masculino. Nas rodinhas de conversa dos bares as mulheres são frequentemente julgadas por seu comportamento, roupas e vida sexual. Em espaços de lazer gays são vistos enquanto promíscuos e qualquer manifestação de carinho com seus companheiros são vistos com desconfiança, ojeriza e desrespeito.
Tais exemplos pontuais são apenas uma forma de compreendermos e relacionarmos os casos emblemáticos enquanto práticas de nosso cotidiano que culminam em situações extremas. Não nos enganemos: essa violência é diariamente vivenciada.
Não bastasse tratar o estupro ocorrido no Rio de Janeiro enquanto bizarro em que os agressores são patologizados, para não se verem refletidos nessa realidade e assim compartilhar da culpa de uma sociedade que legitima e reproduz a cultura do estupro, as narrativas em torno do caso passaram ora a negar o ocorrido ora desqualificar a vítima. O passado da vítima foi vasculhado e fatores como: ter filho, usar drogas e frequentar bailes funk passaram a deslegitimar o estupro, ou melhor, a justificar a violência. A menina se tornou vadia, e nessa lógica, merecia ser estuprada. E as mulheres saíram as ruas, mais uma vez, para gritar pelo direito aos nossos corpos, pela liberdade de poder ser quem quiser, para denunciar a violência que subjuga, humilha e mata, para enfatizar que lugar de mulher é onde ela quiser e escancarar as relações machistas que todas somos submetidas. Escancarar que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e que, portanto, não se trata de um caso isolado, de doentes, mas de relações hierárquicas e desiguais que acarretam em violência.
O
Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil publicado em 2012 pela
Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR) informa que a intolerância mata e viola
diretos humanos já que naquele ano ocorreram pelo menos 310 homicídios com a
população LGBTT. [1]
Segundo os relatórios do Grupo Gay Bahia (GGB) esse número praticamente se mantém nos anos seguintes com o registro de 312 mortes de gays, travestis e lésbicas no ano de 2013, de 336 mortes, incluindo 9 suicídios, no relatório de 2014 e de 318 assassinatos no ano de 2015.
As transexuais e travestis apresentam um risco 15 vezes maior de serem assassinadas o que torna o Brasil líder mundial dessa chacina tantas vezes invisibilizada: mais da metade dos homicídios praticados contra transexuais em todo mundo ocorrem no Brasil. Parece mais fácil a comoção de ataques que são distantes, como o mais recente ocorrido nos EUA. Homofóbicos são os outros. O caso se isola e culpa escorre por entre os dedos como água, já que nada se relaciona com nosso cotidianoopressor.
Segundo os relatórios do Grupo Gay Bahia (GGB) esse número praticamente se mantém nos anos seguintes com o registro de 312 mortes de gays, travestis e lésbicas no ano de 2013, de 336 mortes, incluindo 9 suicídios, no relatório de 2014 e de 318 assassinatos no ano de 2015.
As transexuais e travestis apresentam um risco 15 vezes maior de serem assassinadas o que torna o Brasil líder mundial dessa chacina tantas vezes invisibilizada: mais da metade dos homicídios praticados contra transexuais em todo mundo ocorrem no Brasil. Parece mais fácil a comoção de ataques que são distantes, como o mais recente ocorrido nos EUA. Homofóbicos são os outros. O caso se isola e culpa escorre por entre os dedos como água, já que nada se relaciona com nosso cotidiano
Quando não patologizado, há a tentativa de não qualificar a motivação do crime por ideologia homofóbica e aí o terrorismo, termos por vezes etnocêntrico utilizado para qualificarmos qualquer alteridade, ganha espaço. O terrorista já foi o bárbaro, o monstro, o selvagem, o não-civilizado, o estrangeiro, o outro. O terrorismo é o mal a ser combatido que justifica ataques contra estrangeiros, refugiados, minorias étnicas e que tem a legitimidade do Estado.
Entender o ataque de Orlando, ocorrido em uma boate gay, apenas sob o viés terrorista é não reconhecer que um público alvo foi escolhido, a população LGBTT, e tornar invisível suas pautas, suas demandas e, portanto, as possíveis soluções para o enfrentamento deste tipo específico de violência.
Entender o ataque de Orlando, ocorrido em uma boate gay, apenas sob o viés terrorista é não reconhecer que um público alvo foi escolhido, a população LGBTT, e tornar invisível suas pautas, suas demandas e, portanto, as possíveis soluções para o enfrentamento deste tipo específico de violência.
Encarar
o agressor – homofóbico - unicamente pela lógica terrorista pode. O que não pode é encarar como terrorismo de estado as ações da polícia
que espanca e mata brutalmente Luana Barbosa dos Reis, mulher lésbica, negra e
pobre por se recusar a ser revistada por um policial homem, da mesma polícia
que agride e desfigura o rosto da travesti Verônica dentro da cadeia e que
atira, durante uma troca de tiros, na trabalhadora negra, mãe de quatro filhos,
Cláudia da Silva Ferreira, arrastando seu corpo, pendurado no para choque da
viatura, pelo chão por cerca de 250 metros.
Os
direitos das chamadas minorias[2]
também tem sido alvo de ataques de uma ofensiva
conservadora. Na política, bancadas conservadoras tentam instituir a “cura
gay” através de tratamentos psicológicos e proibir o debate de gênero e
sexualidade nas escolas. Deputados de dez partidos querem anular o decreto
presidencial (nº395/2016) da então presidenta Dilma, que institui o uso do nome
social de travestis e transexuais nos órgãos da administração pública direta e
indireta.
Apesar
dos dados alarmantes sobre homofobia o projeto em tramitação pela
criminalização de ataques contra a população LGBT encontra resistência e
dificuldade de aderência. Ao contrário, presidente da câmara afastado, Eduardo
Cunha, propõe retomada dos projetos de criação do dia do orgulho heterossexual
e da criminalização do preconceito e discriminação contra heterossexuais. O
mesmo deputado também propõe o projeto de lei nº5069 que representa verdadeiro
retrocesso em relação aos direitos historicamente conquistados quanto a atenção
e cuidado com as vítimas de violência sexual, dificultando as orientações,
atendimento e os próprios casos em que o aborto é legalizado no Brasil.
A
própria configuração atual da política brasileira é a representação desse
retrocesso: se nas eleições de 2014 a participação das mulheres já representava
menos de 10% do total de parlamentares, com a posse do presidente interino
Michel Temer, todos os ministérios passaram a ser comandados por homens brancos
e marcados pela exclusão de importantes pastas, como o Ministério das Mulheres,
Igualdade Racial e Direitos Humanos.
Em
momento de negação e retrocesso de direitos, a cultura do ódio se fortalece e
atrocidades como os ocorridos nas últimas semanas veem à tona. A homofobia, o
machismo, o racismo, cada vez mais institucionalizadas pelo Estado, legitimam
situações extremas e práticas autoritárias rotineiras. As tragédias nos
informam sobre os fascismos interiorizados e vivenciados cujo ódio é
banalizado, naturalizado, não responsabilizado, não refletido, não questionado.
O fascismo tem repulsa ao conhecimento e aversão a qualquer alteridade.
Quando uma mulher, um gay, uma travesti causa incomodo ou abjeção por não corresponderem a um determinado padrão e a reação é autoritária, violenta e não dialógica trata-se de uma questão de poder. E onde há poder há resistência. A lógica de não compreensão do outro, das diferenças, das alteridades, sustentadas por uma política institucional não representativa e com ataques aos direitos das minorias, é solo para que essas violências brotem e que o ódio torne o diferente alvo de ataques e repulsa nas relações cotidianas. Por isso estar em diálogo é conseguir compreender as diferenças sem aniquilá-las. Os gritos das ruas são resistência de quem pede outra forma de ver o mundo, outra forma de serem enxergadas, compreendidas e vivenciadas. Precisamos entrar em contato, ouvir sempre e mais as vozes silenciadas pelo autoritarismo.
Quando uma mulher, um gay, uma travesti causa incomodo ou abjeção por não corresponderem a um determinado padrão e a reação é autoritária, violenta e não dialógica trata-se de uma questão de poder. E onde há poder há resistência. A lógica de não compreensão do outro, das diferenças, das alteridades, sustentadas por uma política institucional não representativa e com ataques aos direitos das minorias, é solo para que essas violências brotem e que o ódio torne o diferente alvo de ataques e repulsa nas relações cotidianas. Por isso estar em diálogo é conseguir compreender as diferenças sem aniquilá-las. Os gritos das ruas são resistência de quem pede outra forma de ver o mundo, outra forma de serem enxergadas, compreendidas e vivenciadas. Precisamos entrar em contato, ouvir sempre e mais as vozes silenciadas pelo autoritarismo.
[1] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
[2] Minoria é pensada não no sentido quantitativo, mas na possibilidade de voz ativa e de participação e interferência em instâncias decisórias do poder. Segundo Deleuze (1992, p.218) uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria e o que define a maioria é o modelo ao qual é preciso estar conforme, como exemplo o europeu médio adulto macho habitante das cidades. Para Deleuze a minoria não tem modelo, é um devir, um processo e o povo é sempre uma minoria criadora.