Ninguém nasce sem cultura ou transmite cultura para alguém. Taí um
processo equivocado. Passamos a considerar a cultura com relação a um
processo educativo e formativo dos indivíduos segundo um parâmetro que
foi convencionado e que passou a significar educação de acordo com um grupo
específico. São determinados conteúdos básicos que os indivíduos devem
incorporar para uma convivência harmônica e ao mesmo tempo dominar alguns
códigos comuns que facilitam a comunicação. Certamente, a escolha desses
conteúdos nunca foi tão “democrática” assim.... e esta é uma guerra que
persiste há séculos sobre o que é considerado a forma legítima de saber.
E a cultura entrou nesta dança... as práticas de um segmento
específico da população foi considerada como a expressão máxima e "legítima" de cultura. Assim, a medida dessas elites foi pegar a cultura para si, como a marca genuína do
que é ser elite e colocá-la em uma moldura, enquadrá-la. Mero engano. E o preço desse
equívoco é a eterna esquizofrenia das elites e sua noção de cultura!
A concepção de cultura para as elites, longe do que ela é, tornou-a
como algo fixo, quase imutável na qual uns participam, outros podem participar
e outros não. Alguns conseguem obter, já outro não e nunca terão, de uma forma
possessiva como se fosse um bem material, como um produto comprado que se
coloca na prateleira da sala. E é aí que está o problema... embora a cultura
tenha sido mercantilizada, ela é mais que isso e escorre como água das mãos da
elite, já que não trata-se de um bem e não é imutável, ela se modifica
diariamente. Todos estão na cultura e todos transformam a cultura, embora as
elites tentem com todas as forças nadar na direção contrária.
Essa tentativa de fixação da cultura ocorre não apenas com o que as
elites consideram como sua cultura, a dita “erudita” e “culta”, mas com a
cultura dos outros. É a regra da interação e da afirmação a partir da negação
do outro. Assim, para determinar o que é a "nossa" cultura
ela determina o que são a cultura dos “outros”, e briga a todo momento
para que a cultura dos “outros” também permaneça imutável, para deixar
claramente especificado quem é da elite e o que é da elite e o que e quem não
é. E com essa visão de mundo que associam os indígenas a tudo que o tange o
“rústico”, o “selvagem”, o “não-moderno”, limitando a definição do que é ser
indígena de acordo com suas convicções. Por isso, quando um indígena chega até a universidade, ascende no mercado
de trabalho ou se utiliza de instrumentos tecnológicos gera um desconforto para esta classe.... ai o discurso das
elites é bem claro: como se fosse algo que se “ganha” ou que se “perde” vão
considerar que os indígenas “perderam sua cultura”e não conseguem admitir e
compreender sua presença na universidade, até então um espaço claramente
demarcado como "seu"! Para os outros a
fixidez e para si mesma a transformação. O que eles não percebem é que, embora
lutem com todas as forças para que a “sua” cultura também se mantenha no lugar, ela já
se modificou no tempo... e que a listinha descrita do que é ter cultura para
ela é alargada a cada instante, embora neguem veementemente.
E esta busca esquizofrênica de não mudança é para não perderem nunca os
significados do que é “ser elite”. Afinal, se os espaços antes claramente
definidos e segregados começarem a se unir, qual será a distinção entre ambas
classes? O que determinará meu privilégio? Se todos passarem a andar de avião,
cursar universidade e ouvir Chopin, o que me “diferenciará” dessa população que
não sabe todas as regras de etiqueta na mesa e que fala alto? E quando um
cantor, antes restrito ao gosto fino e apurado das elites, chega ao sucesso
nacional é o que basta para dizer que ele já não é mais o mesmo, que bom mesmo
eram suas primeiras músicas, afinal, agora todos o conhecem e sabem cantar suas
músicas. Tido em outras palavras: virou popular! Lembrando que o "popular" em questão é carregado de um tom pejorativo. O que diferenciará agora?
Caetano Veloso também foi acusado de cair a qualidade musical e “não ser mais o
mesmo” quando o Brasil inteiro cantava a música “Sozinho”.
Mas há também a bem intencionada elite, aquela que quer sim dividir seu
privilégio e refinado gosto, a elite que quer compartilhar de seus temperos, acordes e
literatura. O receio com os bens intencionados é quando se pensa que apenas
agora, com sua ilustre presença e apresentação de suas significações culturais,
que a periferia “atinge” ou “obtém” cultura. Como se antes vivessem em um vazio
cultural, sem qualquer expressão e significação próprias! Certamente é
importante o compartilhamento de informações, por exemplo, que escritores
clássicos brasileiros cheguem nas mãos, ouvidos e olhares de jovens que não
tiveram a oportunidade de conhecer ou de entrar em contato com determinadas
artes ou obras. Isto é expandir, sair dos muros, ampliar as visões. Expandir o
cinema dos shoppings centers e garantir acesso a uma heterogeneidade de pessoas.
Mas que isso seja encarado como uma forma de troca de conhecimento e de
informação e não como uma “dádiva de cultura” dos que tem para os que não tem.
A cultura é o espaço para a invenção, para a transformação e para a
criatividade. A periferia transborda cultura, com gostos, estilos, músicas, expressões, culinária, poesia, cores ... das mais variadas formas e está em
constante mudança... em todos os lugares, de cima para baixo e de baixo para cima.
Tratar de cultura é abrir os horizontes, é abandonar a velha opinião formada
sobre o mundo e sobre as pessoas, é admitir a mudança, é mesclar tradição com o
novo, é vivenciar. A elite que me desculpe, mas cultura é transformação.
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